Conheço dois períodos ditatoriais no Brasil: a fase varguista e a fase militar imposta pelas Forças Armadas. Apenas para dar uma idéia da ditadura, conto o caso emblemático que aconteceu comigo, na minha juventude. Eu era redator de um vespertino chamado "Folha Carioca", na então capital da República, Rio de Janeiro. Encontrei-me, por acaso, dentro de um trem do subúrbio carioca com um contemporâneo de estudos no Colégio Evangélico de Alto Jequitibá. Moço alourado, esportista, com sobrenome alemão, forte, pouco mais velho do que eu. Ele estava fardado. Pertencia à Polícia Especial, temida guarda de Getúlio Vargas, e pretendia fazer vestibular para medicina. Esses policiais, selecionados pelo físico, andavam em motocicletas importadas, famosas no Distrito Federal dessa época. Usavam quepe vermelho, farda vistosa e eram bem remunerados.
Sentei-me ao lado do colega que me perguntou o que eu fazia no Rio de Janeiro. Disse-lhe que era universitário de farmácia e exercia o jornalismo. Ele me falou, sem motivo nenhum, senão pela ojeriza à liberdade: "Não gosto de jornalista. Não lhe dou um tapa na cara porque fomos colegas no Colégio Evangélico". Fiquei quieto. Assim são os sentimentos políticos. Reencontrei-me com esse colega que se formou em medicina. A ditadura caiu. Ele me pediu ajuda, com certa humildade até, pois - recém-formado - tentava morar no interior capixaba e precisava de fazer sua clientela. Eu já era farmacêutico, estabelecido na cidade, e gozava de certa popularidade. Prometi- lhe apoio. Ele, porém, conseguiu emprego num hospital em Vitória, capital do Espírito Santo.
Não defendo ditadura nenhuma. O Senado Federal, no momento, está bastante desmoralizado. Os senadores tentam limpar a barra, eliminando o voto secreto que se transformou em farsa. O brasileiro não fica a par dos defensores da impunidade, como no caso da absolvição, em votação secreta, do atual presidente do Senado. Ele se diz "inucente" (sic). Os senadores votantes dizem uma coisa e fazem outra no anonimato. Pelo menos a maioria agiu desse modo. Agora eles não podem mais mentir a seus eleitores. Há novas denúncias contra o senador Renan Calheiros que continua apregoando sua "inucência", com seu sotaque alagoano e com sua pose de nordestino cabrada- peste.
Não me sinto estarrecido com a popularidade do presidente Lula que defende o correligionário do PMDB. Relembro o prestígio de Getúlio Vargas. O ional getulismo se repete com os petistas. Parece misticismo religioso. As corrupções se assemelham a pecados originais pela condição da humanidade. Não há pecado mortal ou venial. Quem crê na honestidade de Lula, seja catecúmeno ou militante antigo, aceita a glória cívica, ciente de que tudo será perdoado.
O Brasil não tem tradição democrática. O povo engatinha. Isso é preferível a ficar de pé, mas impedido de caminhar por causa da falta de liberdade. Ditadura nunca mais. Regime ditatorial anula a cidadania. A propaganda deletéria transforma o ditador num deus. O povo se embriaga com a espécie de religiosidade diante do santo chefe, todo-poderoso. Militância política, em certos casos, é um arremedo de profissão de fé.